Ela abriu os olhos entorpecida com a
gritaria e assustada com o calor que queimava sua pele. Segurou o coelhinho
pelas orelhas, bem forte. O coelhinho amarelo com rosa que ganhara no Natal.
Com passos furtivos desceu da cama e foi ver o que estava acontecendo.
Segurando o boneco em uma das mãozinhas delicadas, com a outra empurrou a porta
de madeira sem se arriscar em espiar através da fechadura. A porta deslizou
vagarosamente e ela se sentiu meio tonta, ou pela força que fez, já que a porta
era dez ou vinte vezes maior que ela, ou mesmo pelo suor que cobria todo seu
corpo. Colocou o rostinho medroso na fresta que preparara e viu sua mãe
envolvida em berros e gestos agressivos. E o pai do outro lado gesticulando
‘’não’’ com a cabeça – a mesma que adquirira um tom vermelho tomate. Ela sentou
ali e deixou as lágrimas escaparem dos olhos, bem devagar. Colocou a orelhas do
bichinho na boca para não soluçar, para continuar sendo um fantasma espectador.
Estava mais molhada que antes e um cheiro ardia no nariz dela. Era o cheiro da
vergonha e do medo. A mãe gritava, parecendo
psicótica. O pai ria ironicamente. Ela não pôde deixar de pensar que mesmo ali,
sentada no chão e chorando suas mágoas no bichinho infantil, ela era mais
madura do que os participantes daquela cena grotesca que observava. Obviamente
era muito pequena para entender o motivo das brigas ou até mesmo o que era uma
briga de verdade. A maior briga em que já se envolvera estava relacionada com
bolinhos de chocolate. Ela levantou
devagar, determinada a sair do espetáculo e voltar para cama. Segurou a maçaneta
quando, de repente, o coelho, molhado de cima a baixo, escorregou de sua mão. A
única parte dura tinha que encontrar o chão, claro. Quando o olhinho negro
daquele coelho fez um pequeno baque contra as tábuas de madeira, a gritaria
cessou. Ela ficou de olhos apertadinhos e fechados, esperando que começassem a
gritar com ela também. Mas de tanto que olhavam para ela, ela mesma quase virou
um olhinho individual e pequenino. Ninguém perguntou nada, ninguém pediu
desculpas, mas também não havia motivo para isso. O pai e a mãe a pegaram
carinhosamente e enquanto o pai acariciava as costas dela a mãe cantarolava bem
baixinho. O casal, junto, levou-a até o banheiro, limparam-na – seu rosto, as
mãos, as perninhas. O pai a pegou no colo, deu-lhe um beijo na testa e a mãe
apoiava a mão no ombro do pai enquanto massageava seu pés. Deitaram-na na cama
deles, aquele mar enorme de algodão. Ela fechou os olhos. E dormiu. Acordou
abruptamente com a gritaria. Discutiam sobre qual sabão usar para lavar os
lençóis molhados de xixi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário