quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Coisa de criança


Ela abriu os olhos entorpecida com a gritaria e assustada com o calor que queimava sua pele. Segurou o coelhinho pelas orelhas, bem forte. O coelhinho amarelo com rosa que ganhara no Natal. Com passos furtivos desceu da cama e foi ver o que estava acontecendo. Segurando o boneco em uma das mãozinhas delicadas, com a outra empurrou a porta de madeira sem se arriscar em espiar através da fechadura. A porta deslizou vagarosamente e ela se sentiu meio tonta, ou pela força que fez, já que a porta era dez ou vinte vezes maior que ela, ou mesmo pelo suor que cobria todo seu corpo. Colocou o rostinho medroso na fresta que preparara e viu sua mãe envolvida em berros e gestos agressivos. E o pai do outro lado gesticulando ‘’não’’ com a cabeça – a mesma que adquirira um tom vermelho tomate. Ela sentou ali e deixou as lágrimas escaparem dos olhos, bem devagar. Colocou a orelhas do bichinho na boca para não soluçar, para continuar sendo um fantasma espectador. Estava mais molhada que antes e um cheiro ardia no nariz dela. Era o cheiro da vergonha e do medo.  A mãe gritava, parecendo psicótica. O pai ria ironicamente. Ela não pôde deixar de pensar que mesmo ali, sentada no chão e chorando suas mágoas no bichinho infantil, ela era mais madura do que os participantes daquela cena grotesca que observava. Obviamente era muito pequena para entender o motivo das brigas ou até mesmo o que era uma briga de verdade. A maior briga em que já se envolvera estava relacionada com bolinhos de chocolate.  Ela levantou devagar, determinada a sair do espetáculo e voltar para cama. Segurou a maçaneta quando, de repente, o coelho, molhado de cima a baixo, escorregou de sua mão. A única parte dura tinha que encontrar o chão, claro. Quando o olhinho negro daquele coelho fez um pequeno baque contra as tábuas de madeira, a gritaria cessou. Ela ficou de olhos apertadinhos e fechados, esperando que começassem a gritar com ela também. Mas de tanto que olhavam para ela, ela mesma quase virou um olhinho individual e pequenino. Ninguém perguntou nada, ninguém pediu desculpas, mas também não havia motivo para isso. O pai e a mãe a pegaram carinhosamente e enquanto o pai acariciava as costas dela a mãe cantarolava bem baixinho. O casal, junto, levou-a até o banheiro, limparam-na – seu rosto, as mãos, as perninhas. O pai a pegou no colo, deu-lhe um beijo na testa e a mãe apoiava a mão no ombro do pai enquanto massageava seu pés. Deitaram-na na cama deles, aquele mar enorme de algodão. Ela fechou os olhos. E dormiu. Acordou abruptamente com a gritaria. Discutiam sobre qual sabão usar para lavar os lençóis molhados de xixi.

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