quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Fotografia

Em meio à registros fotográficos, ele começou a chorar. Ele segurou nas mãos trêmulas aquela foto em preto e branco e acabou por molhá-la com a água doce das ácidas lágrimas. De tempo em tempo, quando achava que seu coração estava morrendo, e morrendo de verdade, levava a fotografia ao peito. Trazia a imagem pra perto de si, tentando assimilá-la, trazê-la à vida. Olhava seus pés sem firmeza pregados ao chão e seus mocassins azul marinho surrados, que o faziam lembrar tanto da época em que voava e estes nunca tocavam o solo. Sentiu o frio acalmando-lhe as células do corpo, uma por uma. Assim, o arrepio lhe veio, deixando a dor de uma saudades sem fim. Quem o visse, diria que estava sofrendo por amor. Talvez estivesse, mas nada mais importava. Levou uma mão aos cabelos desgrenhados e negros enquanto com a outra, segurava um pedaço de papel desenhado. Segurava com tanta força que parecia que assim que o soltásse, este voaria até mundos nunca explorados. Estava tão só. Estava com ele mesmo e memórias de um passado tão eternamente acabável. Sua respiração agitada sentia o cheiro de rosas murchas e seus lábios estavam parcialmente separados e tentados a gritar. Gritar e nunca mais parar. "Te amo" - sussurrou num tom nunca ouvido por seres humanos, e na esperança de que alguém ainda pudesse ouví-lo. Levou um líquido parecido ao néctar até seus lábios e sentiu na garganta o formigamento. O formigamento de uma morte sem dor. Sem ela, a vida não valia à pena. Sem amar, não valia à pena. Sem certezas de algo tão incerto, não valia mais. Seus joelhos cederam ao peso de seu corpo, e adormecido em seus encantos, sua mão abriu e a fotografia voou. Voou até seu peito. Na tentativa de reverter a morte. Trazer de novo a vida.

Coisa de criança


Ela abriu os olhos entorpecida com a gritaria e assustada com o calor que queimava sua pele. Segurou o coelhinho pelas orelhas, bem forte. O coelhinho amarelo com rosa que ganhara no Natal. Com passos furtivos desceu da cama e foi ver o que estava acontecendo. Segurando o boneco em uma das mãozinhas delicadas, com a outra empurrou a porta de madeira sem se arriscar em espiar através da fechadura. A porta deslizou vagarosamente e ela se sentiu meio tonta, ou pela força que fez, já que a porta era dez ou vinte vezes maior que ela, ou mesmo pelo suor que cobria todo seu corpo. Colocou o rostinho medroso na fresta que preparara e viu sua mãe envolvida em berros e gestos agressivos. E o pai do outro lado gesticulando ‘’não’’ com a cabeça – a mesma que adquirira um tom vermelho tomate. Ela sentou ali e deixou as lágrimas escaparem dos olhos, bem devagar. Colocou a orelhas do bichinho na boca para não soluçar, para continuar sendo um fantasma espectador. Estava mais molhada que antes e um cheiro ardia no nariz dela. Era o cheiro da vergonha e do medo.  A mãe gritava, parecendo psicótica. O pai ria ironicamente. Ela não pôde deixar de pensar que mesmo ali, sentada no chão e chorando suas mágoas no bichinho infantil, ela era mais madura do que os participantes daquela cena grotesca que observava. Obviamente era muito pequena para entender o motivo das brigas ou até mesmo o que era uma briga de verdade. A maior briga em que já se envolvera estava relacionada com bolinhos de chocolate.  Ela levantou devagar, determinada a sair do espetáculo e voltar para cama. Segurou a maçaneta quando, de repente, o coelho, molhado de cima a baixo, escorregou de sua mão. A única parte dura tinha que encontrar o chão, claro. Quando o olhinho negro daquele coelho fez um pequeno baque contra as tábuas de madeira, a gritaria cessou. Ela ficou de olhos apertadinhos e fechados, esperando que começassem a gritar com ela também. Mas de tanto que olhavam para ela, ela mesma quase virou um olhinho individual e pequenino. Ninguém perguntou nada, ninguém pediu desculpas, mas também não havia motivo para isso. O pai e a mãe a pegaram carinhosamente e enquanto o pai acariciava as costas dela a mãe cantarolava bem baixinho. O casal, junto, levou-a até o banheiro, limparam-na – seu rosto, as mãos, as perninhas. O pai a pegou no colo, deu-lhe um beijo na testa e a mãe apoiava a mão no ombro do pai enquanto massageava seu pés. Deitaram-na na cama deles, aquele mar enorme de algodão. Ela fechou os olhos. E dormiu. Acordou abruptamente com a gritaria. Discutiam sobre qual sabão usar para lavar os lençóis molhados de xixi.

Uma homenagem.

Na nossa vida a gente conhece muitas pessoas, algumas ficam na memória e outras não. Das que ficam, existem aquelas que a gente sempre está relembrando e revivendo e existem aquelas que guardam-se carinhosamente num estoque quentinho ou num cantinho da cabeça. Assombra-me, ou talvez assombrar seja um verbo sinistro demais para utilizar e seja melhor dizer "surpeende-me", o impacto que um encontro pode ter nas nossas vidas. Vivemos numa realidade um pouco diferente da dos filmes de ficção ou romance. Vivemos num mundo construído sobre pilares de vulnerabilidade. E sou uma pessoa extremamente vulnerável quando se trata de saudades. Sinto saudades de cada pessoa que marcou minha vida, seja por um dia ou por alguns anos. Conheci um homem que a cada vez que o ouvia falar sentia uma alegria, um prazer pela vida. Um homem que conseguiu, mesmo que de longe, me proporcionar diferentes emoções (das quais nem sempre gostava, talvez por não conhecê-las) e que se fazia presente nas recordações. E era, e ainda é, difícil associar o passado cruel que algum dia ele já vivera com aquele simpático sorriso por detrás de seus belos olhos. Não é dramático a gente chorar por alguém, é um meio de permitir que as saudades se materializem e mais que isso, é um jeito, talvez não o único, de demonstrar a nossa dor. Esse mesmo homem será sempre lembrado do jeito que o conheci, engraçado, ativo e de bom humor. Será lembrado por suas belas palavras, ainda presentes entre nós, pairando no topo do Pão-de-Açúcar e por entre o bater de asas de uma gaivota.  Será lembrado como um homem forte. Um homem que se fez forte nas palavras que hoje emprego nas minhas poesias, se fez forte naquela única viagem e mais que isso, se fez forte nos nossos corações.

Tua presença é infinita
no mundo que hoje se deita sobre nós
e cobre-nos o corpo como um cobertor quente
de saudades e amor.

Tua presença é o som da tua risada
são tuas imortais ideias
tuas imortais batalhas.

Tua presença é o agradecimento
que paira dentro de meu peito
é a sorte de termos recebido alguém como ti
dos céus, ou da terra, ou da música.

Tua presença é e ainda estará
sobre nossos batimentos,
sobre nossos olhos e lágrimas
e sobre nossas memórias,
que assim como ti, nunca se apagam,
apenas crescem mais e mais
sem limite ou tempo suficiente
para torná-las passado.